Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
19 de Abril de 2024

Iter Victimae - Os processos de Vitimização

Publicado por Alm Li Diane
há 8 anos

A doutrina aponta três fases da evolução do papel da vítima, que variam conforme a sua importância no âmbito processual e criminológico, quais sejam:

Idade de ouro da vítima ou protagonismo: essa primeira fase compreende o período desde a época dos primórdios da civilização até o final da Alta Idade Média.

Essa fase do protagonismo consistiu no período em que imperava a vingança privada, época na qual era a própria vítima quem efetuava a reparação dos danos ou a punição. A resposta ao delito possuía predominantemente um enfoque de vingança e de punição, em poucos casos era dotada de natureza reparatória. Predominava a Lei de Talião, a autotutela da vítima no processo.

Neutralização da vítima: verifica-se que a partir da Baixa Idade Média, no início do século XII, época marcada pela crise do sistema feudal, pelo surgimento do processo penal da inquisição e pelas Cruzadas, a vítima deixou de ter um papel relevante, de protagonizar o processo, passando a ser substituída pelo soberano nos conflitos criminais.

Houve uma neutralização da vítima, o poder de reação ao crime mudou de titularidade, a resposta ao delito passou a ser do Estado, ente dotado de imparcialidade, havendo, pois, a despersonalização da rivalidade. Mudou-se o enfoque da finalidade da punição, passando a haver uma menor preocupação quanto ao aspecto de reparação do dano, pois a sanção teria o escopo de prevenção geral. Assim, houve “um total esquecimento da vítima”

Redescobrimento ou revalorização da vítima:

Surgiu desde a Escola Clássica a percepção da importância do processo de revalorização do papel da vítima no âmbito do processo penal. Todavia, a questão da vítima somente passou a ter um contorno sistemático no momento no qual passou a ser abordada pela Criminologia. Com efeito, o estudo da vítima, art. 598 c/c art. 31, do CPP, passou a ser mais evidente após a Segunda Guerra Mundial, mormente diante do martírio que os judeus sofreram nos campos de concentração, os quais estavam sob o comando de Adolf Hitler. Esse redescobrimento da vítima constitui “uma resposta ética e social ao fenômeno multitudinário da macro vitimização, que atingiu especialmente judeus, ciganos, homossexuais e outros grupos vulneráveis”.

A vitimologia é a ciência que se ocupa da vítima e da vitimização, cujo objeto é a existência de menos vítimas na sociedade, quando esta tiver real interesse nisso.

O estudo da Vitimologia é dotado de suma relevância, pois possibilita a análise da vítima diante de sua relação com o delinquente, para que se possa constatar a existência de conduta dolosa ou culposa do agente, assim como permite analisar o grau de responsabilidade da vítima ou mesmo a sua contribuição, ainda que involuntária e inconsciente, para a prática da infração penal, tendo repercussão na adequação típica e também na aplicação da sanção penal. Ademais, o estudo da Vitimologia tem contribuição significativa para a compreensão do fenômeno social da criminalidade, trazendo diretrizes para o combate ao crime a partir do viés analisado sobre a vítima e os danos por ela sofridos

Em que pese exista divergência doutrinária, verifica-se que a Vitimologia não é dotada de autonomia científica, é, pois, englobada pela Criminologia, que configura o estudo do fato delitivo em sua totalidade.

O iter victimae, também denominado de “caminho da vitimização”, consiste no trajeto seguido por um indivíduo para ser convertido em vítima. Assim como o iter criminis, também ocorre a divisão do iter victimae em fases, Lei 11.690/2008, art. 201 quais sejam: “intuição, atos preparatórios, início da execução, execução e consumação, acerca do processo de vitimização, explica que este “diz respeito a relações humanas, que podem ser compreendidas como relações de poder”. A doutrina predominante elenca os processos de vitimização em três grupos:

a) Vitimização primária: trata-se daquela que é causada pela prática do delito, pela conduta do agente que viola os direitos da vítima, causando-lhe danos de diversos tipos, como físicos, psicológicos e materiais, ocasionando inclusive, modificações nos hábitos e mudanças de conduta da vítima

b) Vitimização secundária: este processo de vitimização também é denominado de sobrevitimização. Decorre do tratamento que é dado à vítima pelos órgãos de controle social formal da criminalidade, tais como polícia, Poder Judiciário, etc., tanto pelas ações quanto pelas omissões. Trata-se, pois, do sofrimento adicional que é causado pelos órgãos oficiais estatais que atuam na persecução criminal, na fase do inquérito policial e no curso do processo penal, pela mídia e pelo meio social no qual a vítima está inserida

c) Vitimização terciária: trata-se do isolamento da vítima e também do abandono que esta sofre por sua própria comunidade. A vitimização terciária é decorrente da falta de amparo conferido à vítima pelos órgãos públicos, e também da ausência de receptividade da sociedade no tocante à vítima. Trata-se da vitimização proveniente dos membros da família e também do grupo social da vítima, por atos de segregação, exclusão e humilhação por ter sofrido a prática do crime. Estas condutas estimulam a vítima a não denunciar o delito às autoridades competentes, ocorrendo a denominada “cifra negra", que corresponde à quantidade de delitos que não são comunicados ao Estado.

A vitimização indireta, que se trata do sofrimento das pessoas que estão relacionadas intimamente à vítima de um delito, e que sofrem juntamente com ela, e também a heterovitimização, que corresponde à “auto recriminação da vítima” diante de um crime cometido, por meio da busca pelas razões que a tornaram, de modo provável, responsável pela prática delitiva, v. G., ter deixado a porta de um automóvel sem a trava ou ter assinado uma folha de cheque que estava em branco.

Existem vítimas de crimes de sequestro ou que são detidas contra a sua vontade que desenvolvem a denominada “Síndrome de Estocolmo”, que consiste num estado psicológico em que são criados laços de afeto com o raptor

Há hipóteses de autocolocação e de heterocolocação da vítima em risco: a primeira ocorre quando a vítima põe a si própria em situação de risco, colaborando para a ocorrência do crime, enquanto que a segunda ocorre nas hipóteses em que um terceiro a põe em risco.

OS TIPOS DE VÍTIMA

Existem diversas classificações sobre os tipos de vítima. A nosso ver, a classificação mais relevante. Considera em sua classificação a existência de participação ou de provocação da vítima: “vítimas ideais”: tratam-se das vítimas completamente inocentes; “vítimas menos culpadas que os criminosos”: consistem nas vítimas ex ignorantia; “vítimas tão culpadas quanto os criminosos”: tratam-se das vítimas em situações em que há, por exemplo, uma dupla suicida, o aborto consentido, a prática de eutanásia; “vítimas mais culpadas que os criminosos”: tratam-se das vítimas que, mediante provocação, dão causa ao crime; e “vítimas como únicas culpadas”: tratam-se das vítimas agressoras, das simuladas, e das imaginárias.

Assim, a síntese da classificação da vítima em três grupos, quais sejam: “vítima inocente”: consiste na vítima que não concorre, com seu comportamento, de maneira alguma, para a prática da infração penal; “vítima provocadora”: trata-se da vítima, que de forma voluntária ou imprudente, colabora para instigar o ânimo delitivo do agente; e “vítima agressora, simuladora ou imaginária”: consiste na vítima suposta, também denominada de “pseudovítima”, a qual acaba por justificar a legítima defesa daquele que a agride.

OS FATORES DE VULNERABILIDADE DA VÍTIMA E OS RISCOS DE VITIMIZAÇÃO: A PREVENÇÃO VITIMÁRIA DA DELINQUÊNCIA

Existem, na sociedade, determinados grupos de pessoas que são mais vulneráveis, ou seja, que dependendo de suas características, profissões, personalidades, são mais suscetíveis a se tornarem vítimas de delitos. Consoante os ensinamentos de:

“As estatísticas de risco demonstram que há grupos humanos especialmente propensos a se converterem em vítimas de delito (crianças e adolescentes, anciãos, marginalizados, estrangeiros etc.) e situações nas quais o cidadão – sem dúvida, legitimamente, porém nem sempre de forma consciente– contribui para sua própria vitimização”.

Devido ao risco de vitimização de grupos ou de subgrupos de vítimas em potencial, são instituídos “programas de prevenção vitimária” que têm o escopo de informá-las e de conscientizá-las sobre os riscos por elas assumidos, estimulando atitudes de maturidade, de responsabilidade e de autocontrole, na defesa de seus interesses.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. , elenca a cidadania e a dignidade da pessoa humana como dois dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Nesse viés, deve ser dado pelo Poder Público às vítimas diretas e indiretas todo o aparato para que sejam assegurados os direitos destas e para que haja uma verdadeira ressocialização delas, que muitas vezes, além de perdas materiais, apresentam danos físicos, psicológicos e morais, necessitando de assistência, e em alguns casos, até mesmo da proteção estatal.

O ordenamento jurídico pátrio apresenta algumas normas sobre assistência às vítimas: o art. 245 da Constituição da República preceitua que: “A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso; a Lei nº 9.807/1999 traz “normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas”, sendo que seu art. 12 institui, no âmbito do Ministério da Justiça, o denominado “Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas”, o qual possui atribuições para executar a política de direitos humanos, sendo regulamentado pelo Decreto nº 3.518/2000; a Lei nº 12.845/2013 dispõe a respeito do “atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual”.

É preciso que as vítimas recebam todas as informações necessárias, que tenham atendimento multidisciplinar por assistente social, psicólogo, médico, além de assessoramento jurídico. Segundo nos parece, às vítimas das classes sociais menos favorecidas deve ser dado tratamento prioritário, pois em muitas situações são deixadas de lado, menosprezadas pelo Estado e pela sociedade. Também são necessários recursos para implementar as Políticas Públicas em prol das vítimas da criminalidade.

  • Sobre o autorShareholder AE Perita do Juízo nas Esferas:Analise e Laudo de Grafoscopia e Docu
  • Publicações327
  • Seguidores306
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoNotícia
  • Visualizações12918
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/iter-victimae-os-processos-de-vitimizacao/359512554

Informações relacionadas

Fernanda Borges de França, Advogado
Artigoshá 6 anos

Evolução Histórica Do Objeto de Estudo da Vitimologia

Daniel Albuquerque, Estudante de Direito
Artigoshá 6 anos

Quais os tipos de Cifras Criminais?

Carlos Morotti, Escrevente
Artigoshá 9 anos

Vitimização primária, secundária e terciária

Maria Isabel de Queiroz, Advogado
Artigoshá 6 anos

O que é vitimologia?

Bruno Bottiglieri, Advogado
Artigoshá 6 anos

Noções de Criminologia: Conceito, Método, Objeto e Finalidade.

3 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)

Ótimo artigo, parabéns! Está ajudando muito nos meus estudos! Faltou apenas uma introdução sobre Vitimologia, mencionando Benjamin Mendenson, como o pai da Vitimologia, dentre outro autores. Esta ciência que é um braço da Criminologia. continuar lendo

Interessante este Artigo. Conciso e direto. continuar lendo

Bom dia;
Estou procurando material que explique o NÃO ao porte de arma, quando a SEGURANÇA PÚBLICA não oferece, nem de longe, a proteção que pretensamente o Estado quer proporcionar, de modo exclusivo , verdadeira RESERVA DE MERCADO para as POLíCIAS. Assim como na DEMOCRACIA REPRESENTATATIVA, quando os representantes do povo não o repesenta mais, acaba voltando a DEMOCRACIA DIRETA (povo nas ruas, etc...) na atual conjuntura, a AUTODEFESA é necessária e a proporcionalidade entre ataque e defesa obriga a portar armas de maior calibre. Quem quiser ser vítima e um número de estatística, que o seja. Eu quero meu direito à defesa da vida, da família e da propriedade. continuar lendo